«Afirma Pereira tê-lo conhecido num dia de Verão. Um
magnífico dia de Verão, cheio de sol e de vento, e Lisboa resplandecia. Ao que
parece, Pereira estava na redacção, não sabia que fazer, o director estava de
férias, e ele via-se com o problema de preparar a página cultural, pois o «Lisboa» passara a ter uma página cultural, e tinham-lha confiado. E ele,
Pereira, reflectia sobre a morte. Naquele belo dia de Verão, com a brisa
atlântica acariciando as copas das árvores e o Sol a brilhar, com uma cidade
que cintilava sob a sua janela, e um azul, um azul incrível, afirma Pereira, de
uma limpidez que quase feria os olhos, ele pôs-se a pensar na morte. Porquê?
Isso, Pereira não sabe dizer. Fosse porque o pai, quando ele era miúdo, tinha
uma agência funerária que se chamava Pereira A Dolorosa; fosse porque a sua
mulher morrera tísica uns anos antes; fosse porque era gordo, sofria do
coração, tinha a tensão alta e o médico lhe dissera que se continuasse assim
não durava muito, o facto é que Pereira se pôs a pensar na morte, afirma.»
«O padre António estava abatido, afirma Pereira.
Tinha umas olheiras enormes e um ar extenuado, como de quem não dormiu. Pereira
perguntou-lhe o que se passava e o padre António disse-lhe: Mas então não
sabes?, mataram um alentejano que ia na sua carroça, há greves, aqui na cidade
e noutros lados, mas em que mundo vives, tu que trabalhas num jornal?, olha,
Pereira, vê se te informas melhor.
Pereira afirma que saiu inquieto com esta breve
conversa e com a maneira como fora despachado. Perguntou a si mesmo: em que
mundo vivo? E veio-lhe à mente a ideia bizarra de que talvez não vivesse, e era
como se já tivesse morrido. Desde a morte da mulher que vivia como se estivesse
morto. Ou antes: não fazia mais nada senão pensar na morte, na ressurreição da
carne em que não acreditava e em tolices do género, limitava-se a sobreviver,
limitava-se a uma ficção de vida. E sentiu-se exausto, afirma Pereira. Conseguiu
arrastar-se até à paragem de eléctrico mais próxima e apanhou um eléctrico que
ia até ao Terreiro do Paço. E entretanto, da janela, via desfilar lentamente a
sua Lisboa, olhava a Avenida da Liberdade com os seus belos edifícios, e depois
o Rossio, de estilo inglês; e no Terreiro do Paço desceu e apanhou o eléctrico
que subia para o Castelo. Desceu junto da Sé, pois morava ali perto, na Rua da
Saudade. (...) À entrada deteve-se diante da estante, onde estava o retrato da
mulher. Aquela fotografia fora tirada por ele, em mil novecentos e vinte e
sete, tinha sido durante um passeio a Madrid, e em fundo via-se a silhueta
maciça do Escorial. Desculpa ter chegado um bocado atrasado, disse Pereira.
Afirma Pereira que de há uns tempos a essa parte
adquirira o hábito de falar com o retrato da mulher. Contava-lhe o que tinha
feito durante o dia, confiava-lhe os seus pensamentos, pedia-lhe conselhos.»
Antonio Tabucchi, Afirma Pereira
Uma obra pequena em tamanho, mas grande em génio, cuja acção decorre quando começavam a ganhar força as ditaduras europeias e em Espanha se vivia a guerra civil.
A minha última leitura, que devorei entre a noite de domingo e a noite de segunda-feira.
A ler, então... :)
ResponderEliminarEu gostei bastante, luisa. :)
EliminarLisboeta por escolha
ResponderEliminar"pessoano" por devoção
beijo
Nesta obra, é nítida a influência de Pessoa. :)
EliminarBeijo
Afirma Pereira foi-me dada pela minha mãe aos 14 anos. Mudou a minha vida, a sério!
ResponderEliminarMarco, gostei bastante. :)
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