terça-feira, junho 26, 2018

Afirma Pereira


«Afirma Pereira tê-lo conhecido num dia de Verão. Um magnífico dia de Verão, cheio de sol e de vento, e Lisboa resplandecia. Ao que parece, Pereira estava na redacção, não sabia que fazer, o director estava de férias, e ele via-se com o problema de preparar a página cultural, pois o «Lisboa» passara a ter uma página cultural, e tinham-lha confiado. E ele, Pereira, reflectia sobre a morte. Naquele belo dia de Verão, com a brisa atlântica acariciando as copas das árvores e o Sol a brilhar, com uma cidade que cintilava sob a sua janela, e um azul, um azul incrível, afirma Pereira, de uma limpidez que quase feria os olhos, ele pôs-se a pensar na morte. Porquê? Isso, Pereira não sabe dizer. Fosse porque o pai, quando ele era miúdo, tinha uma agência funerária que se chamava Pereira A Dolorosa; fosse porque a sua mulher morrera tísica uns anos antes; fosse porque era gordo, sofria do coração, tinha a tensão alta e o médico lhe dissera que se continuasse assim não durava muito, o facto é que Pereira se pôs a pensar na morte, afirma.»

«O padre António estava abatido, afirma Pereira. Tinha umas olheiras enormes e um ar extenuado, como de quem não dormiu. Pereira perguntou-lhe o que se passava e o padre António disse-lhe: Mas então não sabes?, mataram um alentejano que ia na sua carroça, há greves, aqui na cidade e noutros lados, mas em que mundo vives, tu que trabalhas num jornal?, olha, Pereira, vê se te informas melhor. 
Pereira afirma que saiu inquieto com esta breve conversa e com a maneira como fora despachado. Perguntou a si mesmo: em que mundo vivo? E veio-lhe à mente a ideia bizarra de que talvez não vivesse, e era como se já tivesse morrido. Desde a morte da mulher que vivia como se estivesse morto. Ou antes: não fazia mais nada senão pensar na morte, na ressurreição da carne em que não acreditava e em tolices do género, limitava-se a sobreviver, limitava-se a uma ficção de vida. E sentiu-se exausto, afirma Pereira. Conseguiu arrastar-se até à paragem de eléctrico mais próxima e apanhou um eléctrico que ia até ao Terreiro do Paço. E entretanto, da janela, via desfilar lentamente a sua Lisboa, olhava a Avenida da Liberdade com os seus belos edifícios, e depois o Rossio, de estilo inglês; e no Terreiro do Paço desceu e apanhou o eléctrico que subia para o Castelo. Desceu junto da Sé, pois morava ali perto, na Rua da Saudade. (...) À entrada deteve-se diante da estante, onde estava o retrato da mulher. Aquela fotografia fora tirada por ele, em mil novecentos e vinte e sete, tinha sido durante um passeio a Madrid, e em fundo via-se a silhueta maciça do Escorial. Desculpa ter chegado um bocado atrasado, disse Pereira.
Afirma Pereira que de há uns tempos a essa parte adquirira o hábito de falar com o retrato da mulher. Contava-lhe o que tinha feito durante o dia, confiava-lhe os seus pensamentos, pedia-lhe conselhos.»

Antonio Tabucchi, Afirma Pereira


Uma obra pequena em tamanho, mas grande em génio, cuja acção decorre quando começavam a ganhar força as ditaduras europeias e em Espanha se vivia a guerra civil.
A minha última leitura, que devorei entre a noite de domingo e a noite de segunda-feira.

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