segunda-feira, outubro 13, 2008

Devia morrer-se de outra maneira

(Trás-os-Montes, Março de 2008)
Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

 José Gomes Ferreira

5 comentários:

  1. O meu primeiro poeta! Aquele rosto inesquecível de menino velho...
    ~CC~

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  2. Há dias que apetece...poder voar */*
    Bela poesia.
    Boa semana e Carpe Diem

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  3. Acrescentaria música dos ABBA e a cerimónia a decorrer numa ilha grega!
    Bjs

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  4. Devia também viver-se de outra maneira...

    Tenho saudades de Trás-os-Montes...

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  5. sim , viver-se de outra maneira , para se pedir uma morte assim ...
    E venham mais poemas do poeta militante!
    Cordialmente____________----
    JRMarto

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