A Porta, de Magda Szabó
Quando estudante
universitária, detestava Schopenhauer; mais tarde, compreendi que devia reter
da sua teoria que qualquer relação sentimental é uma possibilidade de agressão,
e, quanto mais deixo um homem aproximar-se, mais vias se abrem pelas quais o
perigo me pode atingir. Não me foi fácil admitir que eu devia, para mais,
contar com Emerence, a sua existência tornara-se uma das componentes da minha
vida e, no início, fiquei apavorada com a ideia de a perder, se lhe
sobrevivesse, o que aumentaria o meu exército de sombras, cuja presença
imanente e intangível me perturba e me mergulha no desespero.
Esta tomada de consciência em nada se modificou pelo comportamento de
Emerence, variando segundo um número incalculável de chaves: por vezes, ela
tratava-me de um modo tão rude que um estranho, se assistisse, se espantaria
porque tolerava isso. Tal não contava: há muito que eu já não prestava atenção
aos movimentos tectónicos que agitavam a superfície de Emerence; ela deve ter
descoberto o mesmo, e, por mais que não quisesse arriscar o coração, (...)
também ela não podia escapar à sua afeição por mim.
Magda Szabó, A Porta, Dom Quixote
Magda Szabó nasceu em 1917 e faleceu noventa anos
depois, na Hungria. Durante o regime
comunista, os livros da autora foram proibidos, regressando às livrarias no fim
dos anos 50. A Porta, única obra da
romancista traduzida para português, foi publicada em 1987 e adaptada ao cinema,
com o título Atrás da Porta, em 2012.
A acção da obra tem início no período posterior à 1.ª
Guerra Mundial, prolongando-se por algumas décadas. A narradora, Magda, uma jovem
escritora, decide procurar uma governanta que a liberte do trabalho de casa,
para poder dedicar-se à escrita. Alguém lhe recomenda Emerence. Esta aceita,
mas impõe, desde logo, as suas regras.
Emerence, que teve um passado traumático, que
procura, a todo o custo esconder e esquecer, mas que a persegue, revela-se austera,
frontal, intempestiva, de trato difícil, mas, ao mesmo tempo, e
contraditoriamente, generosa e compassiva, com animais e pessoas. Trabalha como
doméstica em casa de Magda, passeia o cão, mas sobra-lhe tempo para limpar a
neve ou as folhas da entrada de todas as casas da rua, para fazer comida para
os vizinhos doentes, para tratar com carinho e zelo os gatos abandonados que
acolhe em sua casa.
A velha senhora não permite que alguém entre em sua
casa – concessão que faz um dia a Magda e, desde sempre, a um tenente-coronel
amigo -, recebendo aqueles que a visitam ou que ela convida no pátio, não
deixando, contudo de ser uma boa anfitriã, pois oferece chá e comida.
Emerence desdenha do Deus de Magda, da sua devoção à
religião. Desvaloriza, igualmente, o trabalho intelectual, como se manifesta
sempre contra o Estado, a Igreja e instituições de caridade. Considera Magda e
o marido uns inúteis por não realizarem trabalhos que impliquem esforço físico.
Pega nos livros de Magda, como em qualquer objeto de decoração, apenas para
lhes limpar o pó.
Apesar do carácter estranho de Emerence, do seu
temperamento quase intratável e da forma agressiva como chega a tratar as
pessoas à sua volta, em particular Magda, todos a estimam e valorizam a sua
disponibilidade, competência e generosidade. Entre ela e Magda, em particular,
desenvolve-se um sentimento profundo, que é uma mistura de amizade, de
admiração mútua e de mágoa.
A Porta
revela-se uma obra sublime, pela intriga, pelo estilo, pelo que tem de
documental, mas, sobretudo, porque constitui uma homenagem à amizade e uma
análise minuciosa – ainda que dolorosa – das relações humanas. Uma leitura a
considerar.
ResponderEliminarNão li ainda.
Este texto "abriu-me o apetite".
Obrigada!
Lídia
De nada, Lídia! Penso que, se o ler, não se arrependerá. :)
ResponderEliminarBeijinho
também fiquei curiosa...
ResponderEliminarÉ um livro interessante, Laura. :)
ResponderEliminarA temática, pelo menos, costuma resultar em livros interessantes. Apontado.
ResponderEliminarSim, Carriço, tenho boas experiências no que toca a esta temática.
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