Eunice de Souza, uma poetisa goesa,
refere, no título de um dos seus poemas, “Don´t look for my life in these poems”,
ou seja, “Não procures a minha vida nestes poemas”, na tentativa, talvez, de
manter longe dos olhares alheios a sua intimidade ou para que o leitor se
distancie da mulher, do ser humano, e possa ver apenas o poeta-ficcionista,
aquele que, como um romancista, fabrica personagens, intrigas e emoções.
Na verdade, ainda que o poeta procure, como escreveu
Pessoa, ser um “fingidor”, isto é, aquele que dá forma às palavras, como o
oleiro dá forma ao barro, assumindo-se, como o romancista, um construtor de
ficções, não lhe é de todo possível higienizar o poema, libertando-o das suas
vivências ou crenças.
A poesia da Raquel não é excepção. Porque recupera
memórias, em particular da infância - de um tempo anterior à descoberta do amor
e da saudade - e da juventude, bem como referências musicais, literárias,
bíblicas, mitológicas, etc., torna-se imensamente rica, enriquecendo quem dela
usufrui, como neste "Trabalhos de ourives":
O amor era o avô
a descascar uma romã
para a avó.
As mãos trémulas,
inexactas,
o vagar do mundo
ou mundo devagar.
A tarde inteira uma romã
ou uma romã inteira.
Enquanto a avó na mesma sombra ao seu
lado,
gato no regaço, dormia a sesta.
ou em "Aves de incêndio":
E a dançar
chegou a tarde
do nosso adeus,
uma tarde
igual a todas as tardes
sem nuvens no
céu ou ameaças de chuva,
apenas
levemente mais fria,
porque já
Outono
e nós aves de
uma só estação,
aves de
incêndio.
Nos poemas que integram Aves de Incêndio há versatilidade - na forma,
nos temas, na linguagem -, sendo por isso capazes de surpreender o leitor a cada
novo texto. Em quase todos eles, intuímos um “eu” lírico que veste, ao mesmo
tempo, o papel de narrador, que se assume quase sempre como protagonista ou que
partilha, com um interlocutor, esse protagonismo ou que, à semelhança de Reis ou de Horácio, lhe dá conselhos:
Aproveita todos os crepúsculos
obriga-te ao encanto
preserva o pasmo, a virtude do entusiasmo,
e a curiosidade dos gatos.
("Chá-dançante")
Take a bike,
take a plane,
take a chance,
go to France,
find a fine romance.
("Like a couple of hot tomatoes" - título recuperado de uma canção interpretada pela Ella Fitzgerald)
Das palavras da Raquel emana uma certa rebeldia, que
parece estar em dissonância com a pessoa serena que conhecemos, mas que se
percebe desde logo no título da obra – Aves
de incêndio. Este título parece ser a expressão de alguém que não se resigna com a sua condição de “bicho” terreno, que precisa de asas para se elevar do chão,
do comum. Não é, contudo, uma ave que se quer exuberante. O voo que pretende
executar não é de exibição, mas de liberdade, através do amor ou das memórias.
“Aves de incêndio” são os amantes, predispostos aos
primeiros voos e ao incêndio dos sentimentos, ora regeneradores, ora
destrutivos, dos quais sobra a amarga lembrança ou as cinzas.
Um amor velho
e seco
como uma
giesta,
folha de
ervário,
corolário de
todos os que o seguiram,
porque o amor
quando acaba,
no âmago do
coração quieto,
fica sempre
amargo.
(Excerto de "Primeiro amor”)
Esta rebeldia exprime-a também no poema “1. Poema
verde” (pág. 7), em que evoca o “Romance Sonambulo de García Lorca e no qual o
“eu” poético, numa atitude irreverente a lembrar Régio ou Pessoa – Álvaro de
Campos, rejeita as convenções, a “normalidade”, o caminho que um interlocutor,
que pode ser singular ou plural, procura impor-lhe:
Não me peças
para amadurecer
que não sou
peça de fruta,
sou peça de
outra engrenagem,
e a vida não é
árvore nem fruteira.
ou na recusa da poesia e a entrega deliberada aos
gestos prosaicos, num poema, que recupera, pela repetição das palavras de “Fim”, a
ironia corrosiva de Mário de Sá-Carneiro:
Hoje estou-me
nas tintas para a poesia,
quero apenas
uma cerveja fria
e companhia.
Pode ser de um
burro,
patudo,
orelhudo
e obviamente
ajaezado à andaluza.
(Poema 76.)
(Poema 76.)
Na escrita poética da Raquel, como, aliás, na prosa, são recorrentes temas como o amor, o apego a Trás-os-Montes e às memórias da infância, o desencanto com o estado do país ou o peso da rotina.
O amor é, muitas vezes, um ritual iniciático, que prepara, ainda de forma inocente, a idade adulta. Ele pode significar doçura, cumplicidade, partilha, mas também é motivo de desencontros, desencanto e de dor.
Trás-os-Montes (T-o-M) são as raízes, o colo, o apelo
telúrico, cantado tantas vezes por Torga que, como a Raquel, era um ser do
campo emprestado à cidade (talvez a Raquel se sinta menos esse ser
“emprestado”, considerando que hoje vivemos num mundo global).
T-o-M são também a infância
feliz, de um tempo anterior à dor, do tempo sem
tempo, em que tudo parecia possível e ter uma saída, como escreveu Ruy Belo. Pelo contrário, para o “eu”
lírico o presente representa a dor, o vazio, a solidão, a falta de rumo. No
presente, é ainda ave, uma ave que desistiu de voar:
Com o tamanho
da minha solidão
fiz um elefante.
O maior mamífero sobre a
terra.
E o meu elefante vai
em passo pesado e lento,
a mesma pele espessa e
parda,
incisivos de marfim,
peugadas redondas,
quase lunares.
Vai sem perigo de extinção,
cheio de solidão,
indistinguível na manada.
(Poema 72.)
Podia ser índio, pirata,
astronauta,
todos os sonhos em embrião,
a vida no princípio e cheia
de tesão.
Conhecia todos os animais da
rua
e não havia sinais de
trânsito
nem relógios a prender os
meus gestos.
(...)
As mãos sempre sujas,
as amoras negras,
o pão escuro,
o cabelo curto
e ninguém sabia se eu era
menino ou menina.
("Da invisibilidade dos camaleões")
Gostei de ler. :)
ResponderEliminarÓptimo, Luísa! Obrigada. ;)
ResponderEliminarBoa semana.
ResponderEliminarMaravilha!...
Tenho o livro, mas ainda não o "explorei" devidamente, tão só por falta de tempo.
Bj.
também gostei :)
ResponderEliminarVale muito a pena explorá-lo, Lídia! :) Bj
ResponderEliminarÓptimo, Laura! ;)
Obrigada a ambas.