com outro rosto, outra morada, outra identidade,
sem contudo deixar de ser eu, sempre e só eu,
e acreditem que gostava de ficar sentado numa esplanada,
numa cadeira branca de palhinha, a ver-me ser outro
sem deixar de ser eu, com os mesmos tiques,
com a mesma exaltada paixão pelo timbre da palavra,
com o mesmo vício dos livros, que é o único
que verdadeiramente tenho e que me custa os olhos da cara.
Mas é impossível, paciência. Resta-me a transfiguração
naquilo que escrevo, compulsivamente, como um asmático
a tentar libertar-se do ar que lhe oprime o peito.
E para dizer a verdade, que é coisa que a poesia
não tem necessariamente que dizer, não sei ao certo
o que poderia ser se chegasse a ser outro.
O que faria eu sem outra identidade? Seria astronauta,
veterinário por amor aos bichos, corretor de bolsa
transformado em pintor impressionista como o meu querido
Gauguin, cinzelador de metais raros e preciosos,
ourives de corte, cronista das tragédias sociais?
Creio que nenhuma das hipóteses me agradaria
e voltaria a ser aquilo que sempre fui,
heterónimo de mim mesmo, a fugir de mim aos ziguezagues,
cobra largando a pele dos ódios e dos medos
sem se importar com a estação em que a mudança se opera
(e para que a rima não falte), seja ela Inverno ou Primavera.
José Jorge Letria, Produto Interno Lírico
Comecei a ler o texto pensando que era teu.
ResponderEliminarFiquei surpreendida quando vi que não era.
Às vezes sonhamos mudar, mas na verdade, a maior parte de nós, não saberia ser outro, porque se as pessoas realmente quiserem mudar, mudam. E vamos mudando com o tempo e a idade, só que não o fazemos de uma vez.
Não me vejo a ser muito diferente, e no entanto sonhava uma vida completamente diferente para mim, quando era jovem. Dessa vida que sonhava, faziam parte os filhos que não tive...
Seria mais feliz, com a vida que sonhei? Seria menos? Não sei, nem perco tempo a pensar nisso. Considero-me uma pessoa feliz. Não tenho algumas coisa, mas tenho tantas outras!
Gostei muito da fotografia. Quem tem uma esplanada por baixo da varanda deve sentir-se sempre acompanhado...desde que não haja muito barulho...
Bom fim-de-semana :)
È o produto interno que importa! BJ
ResponderEliminarIsabel, também eu quis muito, há muito tempo, uma vida diferente. Curiosamente, a ambição nunca foi -nem é- de bens materiais. Apesar de, muitas vezes, desejar mudar, sair do local onde vivo, sinto-me grata por muitas coisas que a vida me tem proporcionado. Em mim, desejo limar certas arestas,certos pontos fracos de que não gosto, para ser mais serena e ter uma convivência mais fácil com os outros. O certo é que temos de nos perdoar.
ResponderEliminarQuem me me dera saber escrever assim!
Um óptimo domingo. BJ
Paula, de todo!
Bj e um óptimo domimgo