quinta-feira, fevereiro 19, 2015

Das minhas leituras


(Foto de Silvestre Raposo)

«Uma coisa parecia certa: no dia vinte e cinco de abril de mil novecentos e setenta e quatro, faltaria ainda um bocado para as sete da manhã, Celestino apertou a cartucheira à cintura, enfiou a Browning a tiracolo, verificou o tabaco e as mortalhas, esqueceu-se do relógio pendurado num prego que também segurava um calendário e saiu porta fora. (...) Por cima das sopas de café com leite, Celestino emborcara, sem esforço, dois tragos de bagaço. O primeiro, para a azia. O segundo, para os pensamentos cismáticos (...).
Por volta das onze horas, nenhum vento de mudança fora ainda sentido por aqueles que viviam da cruel aritmética dos alqueires, dos cinchos, das safras, das luas, das maleitas, das malinas, das geadas. Nos campos, homens e mulas rasgavam a terra em irrepreensíveis geometrias, enquanto, na penumbra dos currais, embaladas por ladainhas que os próprios lábios iam tecendo, as mulheres atestavam as gamelas dos porcos, das cabras, dos filhos.»


João Ricardo Pedro, O teu rosto será o último

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