terça-feira, novembro 22, 2005

eu amo a lua do lado que eu nunca vi

CANÇÃO DA SAUDADE Se eu fosse cego amava toda a gente. Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gémea que nasceu sem vida, e amo-a a fantasiá-la viva na minha idade. Tu, meu amor, que nome é o teu? Diz onde vives, diz onde moras, diz se vives ou se já nasceste. Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longíssimos. Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas. Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas. Eu amo os cemitérios — as lages são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos floridos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim. Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a Lua do lado que eu nunca vi. Se eu fosse cego amava toda a gente. (Almada Negreiros, Frisos)

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