domingo, março 25, 2018

Poetas hermanos

Um texto que escrevi há três anos para outro blogue, a pedido do seu administrador.


Quando nos pedem para falar sobre livros, ocorre-nos, de imediato, um qualquer título de ficção em prosa, por norma um romance, uma colectânea de contos ou uma novela. Talvez pelo facto de sermos todos, sem excepção, narradores de pequenas ou grandes histórias, protagonizadas por nós ou por outros, ainda que muitos sejamos leitores de outros géneros, como o ensaio ou a poesia. Fugindo um pouco à regra, hoje apraz-me discorrer, ainda que brevemente e numa atitude de leigo, sobre uma antologia poética de autores do país vizinho, de que tive conhecimento e adquiri recentemente e de que tenho vindo a desfrutar aos poucos, como aos poucos devem ser degustados os alimentos cujos sabores nos são menos familiares, mas que nos agradam.

Poesia Espanhola, anos 90 é uma edição bilingue, em castelhano e português, organizada e traduzida por Joaquim Manuel Magalhães, publicada em 2000, pela editora Relógio d’ Água. Presidiram à selecção dos autores e dos textos critérios como as preferências do próprio compilador e o facto de todos os poetas terem começado a publicar em livro nos anos noventa.

Integram esta antologia, que se articula com o volume II de Poesia espanhola de agora (Relógio d’ Água, 1997), trinta autores, nascidos entre 1964 e 1975. É, aliás, por ordem de nascimento que os poetas nos são dados a conhecer, tendo Joaquim Magalhães a preocupação de fazer preceder a cada conjunto de textos uma breve nota biográfica do autor.

Os versos insertos nesta compilação nascem da observação de aparentes minudências quotidianas, de rostos ou de gestos alheios, nascem do medo, do amor, da ausência, da dor, da solidão; outros de actos de introspecção ou da relação do “eu” lírico com os outros, com os objetos, com as suas dúvidas ou com o seu corpo. Há-os que parecem ser a expressão de uma espécie de primitivismo alojado no subconsciente individual ou colectivo e que emerge por uma certa permissividade inerente à linguagem e ao universo poéticos. 

A linguagem e o labor poéticos ampliam os pormenores, filtram a realidade, cauterizam feridas, organizam o caos que atormenta o “eu”, iluminam o aparente prosaísmo das situações, surpreendendo-nos, chocando-nos, exorcizando, ao mesmo tempo, os nossos fantasmas, dando voz ao que não sabemos nomear.

Melhor do que escrever sobre os poetas e os seus poemas, é lê-los. 


Julgamos que a vida nos escapa e na realidade a vida é isso


Às vezes fico com a vista parada
─ por exemplo numa parede ─
durante um bom bocado. os olhos
deixam de ver por fora e o corpo
parece que não o sinto. Então
normalmente dou-me conta
(e não mo explico e espanto-me)
desta coisa estranha que é viver,
e faço-me perguntas que cortam
e o que sou concentra-se num ponto
e a única coisa que sinto é que eu
─ a voz que vive em mim e que me diz
isto e aquilo sem palavras ─
também serei menos um. Em breve.
Que tudo o que penso agora,
o que pensei e chegarei a pensar
há muito que não é nada.


Juan Miguel López (Madrid, 1973)


Os dias traidores

São esses que nos passam pelas mãos
com gestos quotidianos,
onde nunca acontece
nada mais senão a vida
com minúscula, quero dizer.
Os do chá com limão enquanto lá fora chove
e se fuma no café para passar a tarde,
os do regresso a casa pelas ruas do costume.
São os dias das coisas pequenas
que secretamente pactuam connosco
o peso dos anos.
Os dias traidores:
silenciosos, amáveis
são o futuro que pouco a pouco aproximam
o oculto abraço da morte
com a mesma doçura
com que os braços do amigo acolhem o meu cansaço.



Silvia Ugidos (Oviedo, 1972)

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