domingo, setembro 04, 2016

Acerca de aves que (se) incendeiam

Eunice de Souza, uma poetisa goesa, refere, no título de um dos seus poemas, “Don´t look for my life in these poems”, ou seja, “Não procures a minha vida nestes poemas”, na tentativa, talvez, de manter longe dos olhares alheios a sua intimidade ou para que o leitor se distancie da mulher, do ser humano, e possa ver apenas o poeta-ficcionista, aquele que, como um romancista, fabrica personagens, intrigas e emoções.

Na verdade, ainda que o poeta procure, como escreveu Pessoa, ser um “fingidor”, isto é, aquele que dá forma às palavras, como o oleiro dá forma ao barro, assumindo-se, como o romancista, um construtor de ficções, não lhe é de todo possível higienizar o poema, libertando-o das suas vivências ou crenças.

A poesia da Raquel não é excepção. Porque recupera memórias, em particular da infância - de um tempo anterior à descoberta do amor e da saudade - e da juventude, bem como referências musicais, literárias, bíblicas, mitológicas, etc., torna-se imensamente rica, enriquecendo quem dela usufrui, como neste "Trabalhos de ourives":

O amor era o avô
a descascar uma romã
para a avó.
As mãos trémulas,
inexactas,
o vagar do mundo
ou mundo devagar.
A tarde inteira uma romã
ou uma romã inteira.
Enquanto a avó na mesma sombra ao seu lado,
gato no regaço, dormia a sesta.

ou em "Aves de incêndio":

E a dançar
chegou a tarde do nosso adeus,
uma tarde igual a todas as tardes
sem nuvens no céu ou ameaças de chuva,
apenas levemente mais fria,
porque já Outono
e nós aves de uma só estação,
aves de incêndio.


Nos poemas que integram Aves de Incêndio há versatilidade - na forma, nos temas, na linguagem -, sendo por isso capazes de surpreender o leitor a cada novo texto. Em quase todos eles, intuímos um “eu” lírico que veste, ao mesmo tempo, o papel de narrador, que se assume quase sempre como protagonista ou que partilha, com um interlocutor, esse protagonismo ou que, à semelhança de Reis ou de Horácio, lhe dá conselhos:

Aproveita todos os crepúsculos
obriga-te ao encanto
preserva o pasmo, a virtude do entusiasmo, 
e a curiosidade dos gatos.

("Chá-dançante")

Take a bike,
take a plane,
take a chance,
go to France,
find a fine romance.

("Like a couple of hot tomatoes" - título recuperado de uma canção interpretada pela Ella Fitzgerald)

Das palavras da Raquel emana uma certa rebeldia, que parece estar em dissonância com a pessoa serena que conhecemos, mas que se percebe desde logo no título da obra – Aves de incêndio. Este título parece ser a expressão de alguém que não se resigna com a sua condição de “bicho” terreno, que precisa de asas para se elevar do chão, do comum. Não é, contudo, uma ave que se quer exuberante. O voo que pretende executar não é de exibição, mas de liberdade, através do amor ou das memórias.


“Aves de incêndio” são os amantes, predispostos aos primeiros voos e ao incêndio dos sentimentos, ora regeneradores, ora destrutivos, dos quais sobra a amarga lembrança ou as cinzas.

Um amor velho e seco
como uma giesta,
folha de ervário,
corolário de todos os que o seguiram,
porque o amor quando acaba,
no âmago do coração quieto,
fica sempre amargo.

(Excerto de "Primeiro amor”)

Esta rebeldia exprime-a também no poema “1. Poema verde” (pág. 7), em que evoca o “Romance Sonambulo de García Lorca e no qual o “eu” poético, numa atitude irreverente a lembrar Régio ou Pessoa – Álvaro de Campos, rejeita as convenções, a “normalidade”, o caminho que um interlocutor, que pode ser singular ou plural, procura impor-lhe:

Não me peças para amadurecer
que não sou peça de fruta,
sou peça de outra engrenagem,
e a vida não é árvore nem fruteira.

ou na recusa da poesia e a entrega deliberada aos gestos prosaicos, num poema, que recupera, pela repetição das palavras de “Fim”, a ironia corrosiva de Mário de Sá-Carneiro:


Hoje estou-me nas tintas para a poesia,
quero apenas uma cerveja fria
e companhia.
Pode ser de um burro,
patudo, orelhudo
e obviamente ajaezado à andaluza.

(Poema 76.)


Na escrita poética da Raquel, como, aliás, na prosa, são recorrentes temas como o amor, o apego a Trás-os-Montes e às memórias da infância, o desencanto com o estado do país ou o peso da rotina.
O amor é, muitas vezes, um ritual iniciático, que prepara, ainda de forma inocente, a idade adulta. Ele pode significar doçura, cumplicidade, partilha, mas também é motivo de desencontros, desencanto e de dor.

Trás-os-Montes (T-o-M) são as raízes, o colo, o apelo telúrico, cantado tantas vezes por Torga que, como a Raquel, era um ser do campo emprestado à cidade (talvez a Raquel se sinta menos esse ser “emprestado”, considerando que hoje vivemos num mundo global).
T-o-M  são também a infância feliz, de um tempo anterior à dor, do tempo sem tempo, em que tudo parecia possível e ter uma saída, como escreveu Ruy Belo. Pelo contrário, para o “eu” lírico o presente representa a dor, o vazio, a solidão, a falta de rumo. No presente, é ainda ave, uma ave que desistiu de voar:

Com o tamanho
da minha solidão
fiz um elefante.
O maior mamífero sobre a terra.
E o meu elefante vai 
em passo pesado e lento,
a mesma pele espessa e parda,
incisivos de marfim,
peugadas redondas,
quase lunares.
Vai sem perigo de extinção,
cheio de solidão,
indistinguível na manada.

(Poema 72.)

Podia ser índio, pirata, astronauta,
todos os sonhos em embrião,
a vida no princípio e cheia de tesão.
Conhecia todos os animais da rua
e não havia sinais de trânsito
nem relógios a prender os meus gestos.
(...)
As mãos sempre sujas,
as amoras negras,
o pão escuro,
o cabelo curto
e ninguém sabia se eu era menino ou menina.

("Da invisibilidade dos camaleões")

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