sábado, janeiro 09, 2016

Cidades cúmplices


(Imagem daqui)

As cidades são a minha fuga, o meu refúgio,
o meu lugar de não ter nome, de não ter casa.
Fujo para as cidades para me perder de mim,
para só me encontrar nos livros que trago
dos esconderijos mais secretos das cidades.
As cidades são as minhas cúmplices. Elas sabem-no.
Tal como acontece com os livros,
sei que nem dez vidas me chegariam para as ler,
para as aprender, para me apaixonar por elas.
São amores fugazes, apressados, indolores.
Não deixam cicatrizes nem remorsos. Apagam-se devagar,
como os círculos ou as estrelas desenhadas a giz
no quadro mais negro do negrume da tristeza.
As cidades são o cálice minguado
em que entorno a luz em vez de vinho,
em que derramo a espuma em vez do néctar.
Retrato-as, retrato-me nelas vorazmente,
sempre a cores, junto das fontes, à porta das catedrais,
sobre as pontes, encostado às estátuas
que dão sombra à sonolência alada dos pombos doentes.
Eu nunca trago as cidades comigo.
Deixo nelas, como penhor da alma, o fio de uma saudade
que o tempo se encarrega de cortar

no ponto em que a ausência sabe a mágoa.

José Jorge Letria, Produto Interno Lírico

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