«Sento-me aqui nesta sala vazia e
relembro. Uma lua quente de verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de
flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um
rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa
a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das
ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza.
Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas
tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível.»
Vergílio
Ferreira, Aparição, Bertrand Editora
Muitos são aqueles
que leram Aparição, de Vergílio
Ferreira; outros talvez tenham ficado apenas com uma ideia da intriga, das
aulas de Português de 12.º ano, uma vez que, durante alguns anos, foi leitura
obrigatória da disciplina.
A obra, publicada em 1959, tem
como protagonista Alberto Soares, um recém-licenciado, que inicia a sua
carreira de professor de liceu em Évora. A acção da obra decorre num período de
nove meses, correspondente a um ano letivo, durante o qual Alberto convive com
a família do Dr. Moura, antigo colega do pai, que tem três filhas – Cristina,
ainda criança, Sofia e Ana.
A história é contada por um
narrador de primeira pessoa, que recorda, muitos anos depois, na sua casa da
Beira Interior, onde a montanha se assume como espaço mítico, os acontecimentos
que vivenciou nesse ano lectivo na cidade alentejana, com a lucidez que a
distância temporal e a maturidade lhe proporcionam.
Quando chega a Évora, Alberto
Soares é um jovem enlutado pela morte do pai. Começa por se instalar numa
pensão no centro da cidade, optando depois por viver sozinho numa casa num
ponto mais elevado, de onde pode observar a cidade, que, aos seus olhos, surge
como um lugar labiríntico, luminoso, mitificado e, por isso, irreal.
Em Évora, o protagonista
depara-se com uma sociedade conservadora, marcadamente estratificada e
católica. Na escola, nas suas aulas, e no convívio com a família Moura, em
particular com Sofia, com quem manterá um relacionamento algo tortuoso, procura
transmitir as suas ideias filosóficas, nascidas da influência de Nietzsche e do
existencialismo.
Em particular depois de uma
viagem que empreende nas férias da Páscoa, e que resulta numa viagem interior e
de autoconhecimento, em que se dá uma espécie de aparição – do “eu” a si
próprio -, Alberto Soares vê-se como uma espécie de messias portador de uma boa
nova, que não pode deixar de transmitir a todos. As suas ideias embora
encontrem resistência, acabam por abalar as certezas de Ana, a filha mais velha
do Dr. Moura, «bem» casada com um engenheiro de «boa família», por despertar a
tragicidade e a rebeldia de Sofia, a filha do meio, e a loucura de Carolino, o
«Bexiguinha», um aluno que começa por admirá-lo, acabando, posteriormente, por
se revoltar, na atitude da criatura que se insurge contra a divindade.
Mais do que um romance, Aparição constitui uma reflexão sobre a
condição humana e sobre a sua relação com a divindade, e um documento do
Portugal dos anos 50 do século XX, marcado pelo conservadorismo e pela
repressão.
muito bem lembrado...
ResponderEliminarbeijo
Obrigada, heretico. :)
ResponderEliminarBeijo
que boas lembranças...
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