quinta-feira, janeiro 28, 2016

A propósito

dos 100 anos do nascimento Vergílio Ferreira, republico um texto, que escrevi recentemente para publicar num outro blog, sobre Aparição, um dos "meus" livros.

«Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível.»

                                                                                         Vergílio Ferreira, Aparição, Bertrand Editora

Muitos são aqueles que leram Aparição, de Vergílio Ferreira; outros talvez tenham ficado apenas com uma ideia da intriga, das aulas de Português de 12.º ano, uma vez que, durante alguns anos, foi leitura obrigatória da disciplina.
A obra, publicada em 1959, tem como protagonista Alberto Soares, um recém-licenciado, que inicia a sua carreira de professor de liceu em Évora. A acção da obra decorre num período de nove meses, correspondente a um ano letivo, durante o qual Alberto convive com a família do Dr. Moura, antigo colega do pai, que tem três filhas – Cristina, ainda criança, Sofia e Ana.
A história é contada por um narrador de primeira pessoa, que recorda, muitos anos depois, na sua casa da Beira Interior, onde a montanha se assume como espaço mítico, os acontecimentos que vivenciou nesse ano lectivo na cidade alentejana, com a lucidez que a distância temporal e a maturidade lhe proporcionam.
Quando chega a Évora, Alberto Soares é um jovem enlutado pela morte do pai. Começa por se instalar numa pensão no centro da cidade, optando depois por viver sozinho numa casa num ponto mais elevado, de onde pode observar a cidade, que, aos seus olhos, surge como um lugar labiríntico, luminoso, mitificado e, por isso, irreal.
Em Évora, o protagonista depara-se com uma sociedade conservadora, marcadamente estratificada e católica. Na escola, nas suas aulas, e no convívio com a família Moura, em particular com Sofia, com quem manterá um relacionamento algo tortuoso, procura transmitir as suas ideias filosóficas, nascidas da influência de Nietzsche e do existencialismo.
Em particular depois de uma viagem que empreende nas férias da Páscoa, e que resulta numa viagem interior e de autoconhecimento, em que se dá uma espécie de aparição – do “eu” a si próprio -, Alberto Soares vê-se como uma espécie de messias portador de uma boa nova, que não pode deixar de transmitir a todos. As suas ideias embora encontrem resistência, acabam por abalar as certezas de Ana, a filha mais velha do Dr. Moura, «bem» casada com um engenheiro de «boa família», por despertar a tragicidade e a rebeldia de Sofia, a filha do meio, e a loucura de Carolino, o «Bexiguinha», um aluno que começa por admirá-lo, acabando, posteriormente, por se revoltar, na atitude da criatura que se insurge contra a divindade.

Mais do que um romance, Aparição constitui uma reflexão sobre a condição humana e sobre a sua relação com a divindade, e um documento do Portugal dos anos 50 do século XX, marcado pelo conservadorismo e pela repressão.

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