terça-feira, outubro 07, 2014

Despir o coração

Imagem "desviada" daqui.

Ante o frio,
faz com o coração

o contrário do que fazes com o corpo:

despe-o.
Quanto mais nu,
mais ele encontrará
o único agasalho possível
-um outro coração.


conselho do avô

Do livro Chuva Pasmada, de Mia Couto

Foi contigo que aprendi a despir o coração. Durante demasiado tempo, fui cobrindo o coração com camadas de roupa, permiti que se impregnasse de pó  e se cobrisse de gelo. Até que deixei de o ouvir. Até que deixei de pensar nele como uma parte de mim. De vez em quando, pequenas pontadas lembravam-me que num espaço algures no meu peito havia um músculo que me mantinha viva.
Tu chegaste, estando eu descuidada. Aos poucos, foste povoando os meus dias com a tua voz, com as tuas gargalhadas, com a tua presença. Um dia, percebi que te tornaras um vício sem o qual não saberia viver. Comecei a entrar no ritual das horas e das esperas.
Aceitei, inicialmente com alguma cautela, a mão que me estendias. Senti que era bom andar de mão dada contigo. Confiava na força com que agarravas a minha. 
Dei conta, depois, que o gelo que cobrira o coração se transformava em água e que havia necessidade de soprar o pó. Como o coração se sentia, então, mais aconchegado, tornou-se urgente começar a despi-lo das roupas com as quais o fora cobrindo.
Não foi tarefa fácil - sabes bem. Precisei de ajuda. A tua revelou-se preciosa. Até que, numa noite de Outono, me apresentei junto de ti de coração nu, em busca do teu agasalho.

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