sexta-feira, novembro 24, 2006

hoje é dia de...

... homenagear António Gedeão ou Rómulo de Carvalho (1906 - 1997), por isso escolho um dos poemas dele de que mais gosto. Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada. Sobe, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Saiu de casa de madrugada; regressa a casa é já noite fechada. Na mão grosseira, de pele queimada, leva a lancheira desengonçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Luísa é nova, desenxovalhada, tem perna gorda, bem torneada. Ferve-lhe o sangue de afogueada; saltam-lhe os peitos na caminhada. Anda, Luísa. Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Passam magalas, rapaziada, palpam-lhe as coxas não dá por nada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Chegou a casa não disse nada. Pegou na filha, deu-lhe a mamada; bebeu a sopa numa golada; lavou a loiça, varreu a escada; deu jeito à casa desarranjada; coseu a roupa já remendada; despiu-se à pressa, desinteressada; caiu na cama de uma assentada; chegou o homem, viu-a deitada; serviu-se dela, não deu por nada. Anda, Luísa. Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Na manhã débil, sem alvorada, salta da cama, desembestada; puxa da filha, dá-lhe a mamada; veste-se à pressa, desengonçada; anda, ciranda, desaustinada; range o soalho a cada passada, salta para a rua, corre açodada, galga o passeio, desce o passeio, desce a calçada, chega à oficina à hora marcada, puxa que puxa, larga que larga, toca a sineta na hora aprazada, corre à cantina, volta à toada, puxa que puxa, larga que larga, Regressa a casa é já noite fechada. Luísa arqueja pela calçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada, Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.

6 comentários:

  1. Fantástico, DEEP!!!

    António Gedeão para mim foi um dos maiores poetas portugueses!

    Já agora digo-te que a SPA vai prestar-lhe uma homenagem no próximo dia 5 de Dezembro, com o lançamento de um CD de Afonso Dias (declamador e antigo deputado) a declamar poesia de Ant. Gedeão. Eu conto lá estar, depois poderei dar mais pormenores!

    Beijinhos!

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  2. Lembro-me de ouvir a Odete Santos recitar este poema e ficar deveras impressionada. Creio que tinha apenas uns dez anos. Nunca mais me esqueci deste tom de cantilena.

    Obrigada por esta memória.

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  3. Primeira imagem ao ler este Poema:
    Uma menina no seu primeiro dia de escola com uma mochila saltintante rua acima!
    Bjos

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  4. Miguel, na verdade a intenção do autor é essa: transmitir a ideia de cansaço.

    Alexandre, fico à espera das tuas notícias sobre esse evento.

    Yashmeen, também me lembro da Natália Correia a declamar este poema. Não tens que agradecer. Estamos aqui para partilhar.

    Ana, essa imagem surge-me muitas vezes, mas nunca a associara a este texto. Aliás, este texto lembra-me sempre um professor de Francês que tive e que, de vez em quando, se lembrava de declamar excertos.

    Rute, é, de facto, um bonito poema.

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