terça-feira, janeiro 10, 2006
há-de flutuar uma cidade
(Foto de Ilídio Pires)
há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado
por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca do mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
coração, mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)
um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas de que alguma vez me viesse a felicidade
(Al Berto, O Medo, Salsugem, 9; 1982)
Outras circunstâncias que não a tristeza ou a solidão (asseguro-vos!) conduziram-me hoje a este poema...
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Como pode ser bonita a canção da tristeza!
ResponderEliminarMas vá lá...Encontra circunstâncias que te levem a cantar outros sentires.
O seu comentário no Tá Difícil trouxe-me até aqui...
ResponderEliminarsenti-me em consonância com a sua frase “Outras circunstâncias que não a tristeza ou a solidão (asseguro-vos!) conduziram-me hoje a este poema...”... porque ‘tá difícil partilhar poemas fortes, que nos falem de solidão, de tristeza, de dor sem as despoletar no outro. Olhar o belo, ainda que triste, não nos obriga a sentirmo-nos deprimidos...
Explicar-me, hoje, ‘tá difícil...
Ainda bem que há outras circunstâncias na origem do post. Se não já ficava preocupada... :)
ResponderEliminarApesar de haver outras circunstâncias para teres optado pelo poema não deixo de ficar preocupada...
ResponderEliminarSei q n ajuda mto mas se for preciso + um chá junto à lareira conta comigo.Jinhos
Se não foi a solidão, nem a tristeza... melhor ainda!
ResponderEliminarAl Berto tem textos fantásticos!
Saudações
Miguel, felizmente não foram esses sentimentos que originara a postagem do poema.
ResponderEliminarTá Difícil, ainda bem que vieste (se não achares abusivo, prefiro o tratamento por "tu")!Talvez noutro momento, tenha retido este poema porque ele se coadunava com o meu estado de espírito, mas ontem foi só isso: a expressão do belo.
Carlota, obrigada pela preocupação!... Outros dias hão-de vir em que, inevitavelmente, estarei triste, mas não ontem, nem hoje...
Aidil, como já percebeste, não tens motivo pra te preocupares. Ao contrário do que pensas, os nossos chás à lareira são sempre agradáveis... aquele bolinho - óptimo! - do dia de reis é que não pode ser!
Carriço, conheço muito pouco da poesia de Al Berto, mas o suficiente pra ter a tua opinião.
Saudações (à Carriço) pra todos